quinta-feira, 19 de abril de 2012

O Clã das Cicatrizes

As lágrimas são um rio que nos leva a algum lugar. O choro forma um rio em volta do barco que carrega a vida da alma. As lágrimas erguem seu barco pelas pedras, soltam-no do chão seco, carregam-no para um lugar novo, um lugar melhor.

Esse parágrafo é do capítulo Marcas de combate: a participação no clã das cicatrizes, do livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés. E cá estou eu recebendo a marca de mais um combate; subindo mais um grau na escala hierárquica do Clã das Cicatrizes; registrando sensações e enviando notícias direto do front.

Notícia boa a gente estende, dá vontade de contar de um por um, ver cada carinha de alegria, organizar encontros, pagar interurbanos; já uma notícia triste eu quero dar uma vez só, eu quero ouví-la sair da minha boca o mínimo possível... então lá vai!

Ontem tive um sangramento e fui prontamente atendida pelo amigo, padrinho e afilhado de casamento, médico competente e cuidadoso, Dr. Alan Hatanaka. Quando ele começou o ultrassom eu reconheci a imagem e identifiquei na hora que o ponto brilhante que piscara tão lindamente no primeiro exame estava imóvel... ele, quieto, vasculhava os arredores, até que disse que não teria boas notícias... o coração do nosso tão desejado bebê não mais batia... o PC, ao meu lado, caiu num choro convulso; eu tentava me conformar com a sabedoria da natureza.

Tudo o que eu queria era ir embora pra casa e aquela Fernão Dias parecia interminável. Chorei, claro, chorei muito. A cada momento eu pensava em um detalhe, em uma pessoa, em um plano e chorava mais.
Chegando em casa choramos juntos, abraçados, debaixo do céu urbano mais estrelado que já vi. Nada como sofrer debaixo das estrelas.

Tomei um banho improvisado no meio do caos da mudança, que não é nada comprarado ao caos interno. Ganhei uma sopinha deliciosa, daquelas que aquecem a alma e cofortam o coração. Sentindo um pouco de cólica, dormi sem nem escovar os dentes.

Acordei de madrugada e ao ver a água da privada tingida de um vermelho intenso a vista escureceu; respirei fundo para ir até o quarto e desmaiei na borda da cama, para desespero do Paulo Cesar, tadinho. Foi um desmaio relâmpago que deixou em seu lugar uma cólica insuportável. Na hora eu só pensava que se eu não suportava aquela cólica, como queria suportar um trabalho de parto?! Coisas diferentes, eu sei... ligamos pro Alan e ele receitou um buscopan. Hora de acionar a família pra encontrar farmácia aberta na madrugada bragantina.

Não sei por que, mas vomitei e a cólica passou, como mágica. Logo minha mãe e o Ed chegaram com o remédio, que tomei sem titubear, tamanho era o medo de viver aquela dor de novo, ainda mais levando em consideração que estávamos indo para São Paulo e a interminável Fernão Dias nos aguardava.
Sem dor, arrumei a mala. Antes de sair fui ao banheiro e me deparei com um volume considerável no absorvente, que quase caiu na privada. Seria ele?! Sem examinar, embrulhei aquele corpo estranho em papel e fui cumprir a promessa que fizera a caminho de casa: enterrei nosso bebê no pé de uma mangueira (a árvore, é claro!). Foi um enterro simbólico, mesmo porque depois disso saiu (e continua saindo) tanta coisa de mim que não dá pra saber qual foi o bonde que ele pegou. Mas ali no pé daquela mangueira recém amiga, no escuro daquele céu estrelado, cavei um pequeno buraco e pedi perdão àquele ser por não ter podido acolhe-lo da forma com ele precisava; agradeci àquela incipiente vida pelas lições tão intensas que ela me trouxe em tão curto espaço de tempo; e desejei que eu saiba entender e assimilar cada uma delas.

Sem dor e com muito sangue lá fomos nós para a estrada interminável. E eu sabia que o pior ainda estava por vir. Aliás, a cada passo que dou ouço claramente “o pior ainda está por vir”. Não vejo a hora de que essa voz diga “fique tranquila, o pior já passou”.

Não sou habitué de hospitais e talvez até mesmo por isso eu não me acostume com esse local. Espera, exame de toque doloridíssimo, muita espera, ultrassom desconfortabilíssimo, mais um exame de toque igualmente prazeroso e o pior (por enquanto): a notícia de que eu teria mesmo que ficar internada para fazer a curetagem, procedimento que retira o resto de material intrauterino (o embrião já não estava mais lá, mas ainda tinha uma “limpeza” a ser feita).

Quando deitei na maca, literalmente contorcendo de dor, e veio a sequência de aperta veia e injeta agulha, desabei. Me vi ali naquele ambiente branco, recebendo uma droga na veia (bem vinda, diga-se de passagem) e com o prognóstico do pior que ainda estava por vir... anestesia e noite no hospital. Não fiz a menor questão de dar uma de forte e “até fiquei com dó de mim”.

Não entra na minha cabeça como pessoas podem passar por isso tudo voluntariamente pra aumentar peito ou tirar barriga! Whatever...

Tive ali alguns momentos de profunda tristeza e desilusão com o mundo. E as auto-perguntas, claro, as auto-perguntas. Mas eu tenho um marido muito ponta firme, muito alto astral, que não deixa eu me afundar nessas coisas e mata na unha todas as pulgas que insistem em se reproduzir atrás da minha orelha.

Consegui até dormir um pouco. Mas a sequência de “piores” não terminou e fui acordada por uma enfermeira que insistia em tirar minha roupa e colocar uma camisola. É claro que eu não gostei, mas é claro que não teve acordo.

A dor foi passando e fui me acostumando com aquela situação... a gente se acostuma com tudo nessa vida... lembrei do Clã das Cicatrizes e comecei a me sentir melhor com esse “talho na cara”.

Agora aguardo o Alan e a tal da curetagem. Enquanto isso me distraio escrevendo... as palavras também insistem em sair de mim!

E aproveito para fazer um pedido aos amigos, àqueles que quiserem expressar seus pesares nessa hora tão difícil: por favor façam-no por escrito. Por e-mail, por facebook, no blog, por carta, cartão postal ou como sua criatividade mandar. Assim vou lendo aos poucos e não preciso responder em tempo real. Permita-me esse pedido... as conversas por telefone são desconfortáveis e ainda é cedo para visitas.

Mas as visitas, inclusive para conhecer a casa nova, serão muito bem vindas em breve! Na medida do possível estou bem e não vejo a hora de poder dizer sem pestanejar “o pior já passou”.

9 comentários:

  1. É isso ai Carol, "o pior já passou" e como o PC, estaremos juntos, para matar qualquer pulga que isista em se aproximar da sua orelha, te amamos muito. Um grande abraço cheio de carinho e o desejo de muita proteção.
    Edmilson.

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  2. Bom dia Carol,
    É muito dificil para uma mulher ler a sua história e não querer ajudar... Uma história triste, dolorida e infelizmente parte da nossa realidade... Meu pai sempre me diz: a diferença entre o perdedor e o vencedor é o quanto cada um aguenta apanhar da vida.... duro mas verdade.... hoje isso é uma dor, mas amanha, tenho certeza, que vai fazer de você uma mulher mais forte, e uma mãe mais carinhosa do que você já foi agora... Nunca perca a esperança, e não abandone o seu sonhe por esse contratempo!!! O pior já passou e hoje você é mais forte! A felicidade e os tempos de alegriam estão por voltar!
    Camila

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  3. Carol, é como vc escreveu "não pense que o papo é morno, ou cor de rosa, ou água com açúcar. É pra quem aguenta; é pra quem leva a vida a sério!" Meu pensamento e oração estão com vcs ! Força ! Um gdeeeeeeeeeeeeeeeeee abraço !

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    1. Engraçado, hoje lembrei dessa minha frase e logo em seguida pensei "poxa vida, não é cor de rosa, mas também não precisa ser cinza, né?!". Mas não está cinza não e permito-me os cor de rosas do por do sol ;)

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  4. Oi Carol, nos vimos tão pouco pessoalmente mas vc já "herdou" o afeto q tenho há tempos por seus pais. E preciso dizer q admiro o modo corajoso como vc encara, enfrenta e supera as coisas. Fiquei triste, ficamos todos tristes. Mas estar triste é uma coisa, ser infeliz é outra. Não é fácil vivenciar certas coisas q acontecem com a gente e, ao mesmo tempo, compreendê-las - para isso todos nós precisamos de um tempo. Viva mesmo agora esse momento com a certeza de que você, frondosa mangueira, daqui algum tempo terá a confirmação de que a gente cresce tanto através das coisas e cores alegres quanto das tristes. Não foi sempre assim? Força aí, beijão e muito carinho.

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  5. Oi João, muito obrigada pelo carinho! Quando quiser vir para Bragança será um prazer recebê-lo! Beijo.

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  6. Linda Carol,grata por escrever. Hoje acolhi uma amiga que está vivendo essa situação. Seu depoimento muito me ajuda a servir outras mulheres. Dou grata.

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